GASLIGHTING: Alguém está tentando fazer você enlouquecer?

Gaslighting é o termo usado para se referir a qualquer tentativa de fazer outra pessoa duvidar de seu senso de realidade. Se para você soa muito familiar as expressões: “Você é tão sensível. Tão emocional. Tão defensivo(a). Você está exagerando. Calma. Relaxe. Pare de surtar! Você é louco(a)! Eu estava só brincando, você não tem senso de humor? Você é tão dramático(a). Deixa pra lá isso de uma vez!”.  Cuidado, você pode estar sendo vítima de Gaslighting.

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O Gaslighting é um tipo de manipulação e violência emocional que remove a credibilidade de uma pessoa próxima, atribuindo suas queixas e desconfianças a uma psicose, desta forma não só ela mesma vai crer que é louca, mas todos ao seu redor também.

O termo vem do filme de 1944 da MGM, “Gaslight”, estrelando Ingrid Bergman. O marido de Bergman no filme, interpretado por Charles Boyer, quer tomar sua fortuna. Ele se dá conta de que pode conseguir isso fazendo com que ela seja considerada insana e enviando-a para uma instituição mental. Para tanto, ele intencionalmente prepara as lâmpadas de gás (no inglês, “gaslights”, vindo daí o nome do filme) de sua casa para ligarem e desligarem alternadamente. Toda vez que Ingrid reage a isso, ele diz a ela que está vendo coisas que ele não consegue ver. Nesse contexto, uma pessoa gaslaiteadora é alguém que apresenta informação falsa para alterar a percepção da vítima sobre si mesma. As ações do personagem de Charles Boyer no filme Gaslight é uma forma intencional e premeditada de gaslaitear, no qual ele estrategicamente age para fazer com que sua esposa acredite estar confusa e louca.

A forma de gaslaitear que estou apontando nem sempre é premeditada ou intencional, o que a torna pior, pois significa que todos nós, especialmente as mulheres, já tiveram que lidar com isso em algum momento da vida. O Gaslighting não é especificamente uma violência machista. Uma mulher pode fazer a mesma coisa, mas levando-se em consideração a opressão machista sobre a mulher na nossa sociedade, quem está com maior chance de ser vítima são elas. Um exemplo comum de Gaslighting:  quando seu marido aparece meia hora atrasado para o jantar sem avisar – isso é desconsideração. Uma observação com o propósito de calar você é quando ele reage dizendo – como, “Relaxa, você está exagerando” – logo após você apontar o comportamento ruim dele, e isso é manipulação emocional, pura e simples.

Aqueles que gaslaiteaim criam reações – seja raiva, frustração, tristeza – na pessoa com quem estão interagindo. Então, quando essa pessoa reage, o gaslaiteador a faz sentir desconfortável e insegura por agir, como se seus sentimentos fossem irracionais ou anormais. E é esse o tipo de manipulação emocional que alimenta uma epidemia em nosso país, uma epidemia que define as mulheres como loucas, irracionais, exageradamente sensíveis e confusas. Essa epidemia ajuda a alimentar a ideia de que as menores provocações fazem com que as mulheres libertem suas (loucas) emoções. Isso é falso e injusto. Acho que é hora de separar o comportamento SEM consideração de manipulação emocional.

O Gaslighting tem sido cada vez mais usado por profissionais da área de saúde mental (psicólogos, psiquiatras e terapeutas) para descrever as vítimas de comportamento manipulador, o termo tem sido usado para pessoas que foram induzidas a pensarem que suas reações são tão insanas, que só podem estar malucas.

Para entender melhor o termo, levantei alguns outros exemplos e os listei a seguir. Começa assim, o manipulador levanta informações falsas com a intenção de causar dúvida na vítima. A vítima passa a duvidar de suas próprias memórias, percepção e sanidade. As formas de apresentação podem ser…

1-   A simples negação por parte do manipulador que os incidentes abusivos anteriores já ocorreram;

2- A realização de acontecimentos bizarros por parte do manipulador com a intenção de desorientar a vítima.

O Gaslighting é uma tática para “fazer alguém enlouquecer”. E com esta tática de desmentir as memórias do outro, é bem fácil mesmo fazer isso, consegue-se a modalidade de culpabilização da vítima.

EXEMPLO 1: “Ele mentia patologicamente, parecia estar encenando com perfeição uma trama, e mesmo em situações que eu tinha certeza da verdade, enquanto ele tentava me convencer, eu chegava a acreditar nele e culpar-me por estar acusando ele, momento depois da conversa eu me sentia confusa, como se a minha verdade não fosse tão verdade, como se os fatos não provassem mais o que eu sabia. Enquanto eu o interpelava a respeito de uma situação de traição ele me dizia que eu estava ficando doente de tanto ciúmes, que eu estava paranoica, que eu… estava enlouquecendo e precisava de ajuda psicológica urgentemente, comecei a achar que era verdade, que estava ficando louca. Não fosse alguns dias depois que uma situação que comprovasse a traição dele, eu talvez estivesse ainda pensando que estava desequilibrada.” (comentário de uma vítima de Gaslighting)

EXEMPLO 2: Minha paciente Anna (todos os nomes trocados por questão de privacidade, claro) é casada com um homem que sente a necessidade de fazer observações não solicitadas e aleatórias sobre seu peso. Sempre que ela fica brava ou frustrada com seus comentários insensíveis, ele responde da mesma maneira defensiva, “Você é tão sensível, estou só brincando”.

EXEMPLO 3: Minha paciente Abbie trabalha para um homem que, quase todos os dias, acha um jeito de criticá-la, assim como a qualidade de seu trabalho. Observações como “Você não consegue fazer algo direito?” ou “Por que fui te contratar?” são comuns para ela. Seu chefe não tem dificuldade em demitir pessoas (o que faz regularmente), então seria difícil pensar, baseado nesses comentários, que a Abbie trabalha pra ele há seis anos. Mas toda vez que ela se posiciona e diz ao chefe brava: “Não me ajuda em nada quando você diz essas coisas”, ela recebe a mesma resposta: “Relaxa, você está exagerando” . Abbie pensa que seu chefe está apenas sendo vítima de seus ataques de fúria nesses momentos, mas a verdade é que ele está fazendo esses comentários para induzí-la a achar que suas reações não fazem sentido. E é exatamente esse tipo de manipulação emocional que a faz sentir culpada por ser sensível e, como resultado, se recusar a deixar seu emprego.

EXEMPLO 4:  Minha paciente Judy namorava com um homem que todas as vezes que ela tentava terminar o relacionamento, ele usava expressões como “Você é tão estúpida, dúvido que irá terminar” ou “Ninguém jamais vai te querer”. Como resultado, o sentimento de insegurança fazia com que ela recuasse e tentasse reatar o relacionamento se culpando e implorando para que ele voltasse com ela.

EXEMPLO 5:  Minha paciente Mary, é mãe de 2 adolescentes, todas as vezes que ela entra no quarto dos rapazes e reclama da desorganização e exige providências a respeito, os dois filhos se juntam para dizer que ela possui algum tipo de “distúrbio e neurose por limpeza”. Sentindo-se culpada pelas discussões, ela limpa o quarto dos filhos sem fazer qualquer tipo de reclamação ou objeção.

EXEMPLO 6: Em abril de 2012 surgiram denúncias de estupro contra militares nos Estados Unidos. Uma das mulheres é a Stephanie Schroeder que relatou que um companheiro da Marinha a seguiu até o banheiro, em abril de 2002. Ela diz que, em seguida, ele deu um soco nela, arrancou as calças dela e a estuprou. Quando ela relatou o que aconteceu, a um oficial superior, ele rejeitou a alegação, dizendo: “Não venha reclamar para mim, se você teve sexo e mudou de ideia”. Stephanie Schroeder, Anna Moore, Jenny McClendon e Panayiota Bertzikis foram às mulheres que levantaram as denúncias sobre o companheiros da marinha e para serem desacreditadas e com isso protegerem os homens que cometeram tal crime, foram diagnosticadas com transtorno de personalidade e consideradas inaptas para continuar no corpo de fuzileiros dá marinha.

“Eu não sou louca, eu sou realmente normal.” (Stephanie Schroeder)

“Lembro-me de pensar que este diagnóstico era um absurdo, completamente ridículo. Como eu poderia ser emocionalmente instável? Estou perfeitamente lúcida, especialmente considerando tudo o que aconteceu”. (McClendon)

Percebam como esta prática é extremamente conveniente, desacreditar  nas mulheres, catalogá-las através de diagnóstico de terem algum grau de psicose, e livrar-se delas sem precisar ir a fundo às investigações e punição dos culpados, que “pasme”: são homens.

EXEMPLO 7:  “Todas as nossas brigas eu pensava comigo mesma: ‘Devo estar de TPM’.  Porque no final de cada briga eu me culpava e achava que estava errada, ele sempre tinha razão;  eu também costumava inventar desculpas para amigos e familiares para justificar os comportamentos do meu parceiro;  eu também sentia que não tinha capacidade de tomar decisões sozinhas e ele cuidava das finanças, meu salário ficava todo na mão dele, por que eu não acreditava que era capaz de gerir o meu próprio dinheiro, quando me empoderei e resolvi tomar de volta esta responsabilidade para mim, ele fez chantagem dizendo que eu não confiava nele, foi muito difícil tomar de volta esta tarefa de gerir meu próprio salário, por que eu me sentia culpada, sentia que estava sendo ingrata com ele.” (depoimento de outra vítima de gaslighting)

Você deve estar se perguntando, como estas mulheres se deixaram influenciar e serem tão manipuladas? A verdade é que é muito mais fácil manipular emocionalmente alguém que foi condicionado por nossa sociedade para tal. Nós continuamos a impor isso sobre as mulheres pelo simples fato de que elas não recusam nossos fardos. É a covardice suprema. O gaslaitear pode ser tão simples quanto alguém sorrindo e dizendo, “Você é tão sensível”, para outra pessoa. Tal comentário pode soar inócuo, mas naquele contexto a pessoa está emitindo um julgamento sobre como a outra deveria se sentir.

Mesmo que lidar com gaslaitear não seja uma verdade universal para todas as mulheres, nós certamente conhecemos muitas delas que enfrentam isso no trabalho, em casa ou em seus relacionamentos.

E o ato de gaslaitear não afeta só mulheres inseguras. Até mesmo mulheres assertivas e confiantes estão vulneráveis. Por que?

Porque as mulheres suportam o peso da nossa neurose. É muito mais fácil para nós colocar nossos fardos emocionais nos ombros de nossas esposas, amigas, namoradas e empregadas, do que é impô-los nos ombros dos homens.

Quer gaslaitear seja consciente ou não, produz o mesmo resultado: torna algumas mulheres emocionalmente mudas.

Essas mulheres não conseguem expressar com clareza para seus esposos que o que é dito ou feito a elas as machuca. Elas não conseguem dizer a seus chefes que esse comportamento é desrespeitoso e as impede de trabalhar melhor. Elas não conseguem dizer a seus parentes que, quando eles são críticos, estão fazendo mais mal do que bem.

Quando essas mulheres recebem qualquer tipo de reprimenda por suas reações, tendem a deixar passar, pensando: “vou esquecer, tá tudo bem”.

Esse “esqueça” não significa apenas deixar um pensamento de lado, é ignorar a si mesma. Parte o coração.

Não é de se admirar que algumas mulheres sejam inconscientemente passivas agressivas ao expressarem raiva, tristeza ou frustração. Por anos, têm se sujeitado a tanto abuso que nem conseguem mais se expressar de um modo que seja autêntico para elas.

Elas dizem “sinto muito” antes de darem sua opinião. Em um email ou mensagem de texto, colocam uma carinha feliz ao lado de uma questão ou preocupação séria, de modo a reduzir o impacto de expressarem seus verdadeiros sentimentos.

Você sabe como é: “Você está atrasado 🙂 ”

Essas são as mesmas mulheres que seguem em relacionamentos dos quais deveriam sair, que não seguem seus sonhos, que desistem da vida que gostariam de viver.

* * *

Como homem e terapeuta, desde que embarquei nessa auto-exploração feminista na minha vida e nas vidas das mulheres que conheço, esse conceito das mulheres como “loucas” tem de fato emergido como uma séria questão na sociedade e igualmente uma grande frustração para as mulheres em minha vida, de modo geral.

Desde o modo com que as mulheres são retratadas em reality shows a como nós condicionamos meninos e meninas a verem as mulheres, acabamos aceitando a ideia de que as mulheres são desequilibradas, indivíduos irracionais, especialmente em momentos de raiva e frustração.

Outro dia mesmo, em um vôo de São Francisco para Los Angeles, uma aeromoça que acabou me reconhecendo de outras viagens perguntou qual era minha profissão. Quando disse a ela que escrevo principalmente sobre mulheres, ela logo riu e perguntou, “Oh, sobre como somos malucas?”.

Sua reação instintiva ao meu trabalho me deixou um bocado deprimido. Apesar de ter respondido como uma brincadeira, a pergunta dela não deixa de apontar um padrão sexista que atravessa todas as facetas da sociedade, sobre como homens veem as mulheres, o que impacta enormente como as mulheres enxergam a si mesmas.

Até onde sei, a epidemia de gaslaitear é parte da luta contra os obstáculos da desigualdade que as mulheres enfrentam. Gaslaitear rouba sua ferramenta mais forte: sua voz. Isso é algo que fazemos com elas todos dias, de diferentes modos.

Não acho que essa ideia de que as mulheres são “loucas” está baseada em algum tipo de conspiração massiva. Na verdade, acredito que está conectada à lenta e firme batida das mulheres sendo minadas e postas de lado, diariamente. E gaslaitear é uma das muitas razões pelas quais estamos lidando com essa construção pública das mulheres como “loucas”.

Reconheço ter gaslaiteado minhas amigas no passado (mas nunca os amigos – surpresa, surpresa). É vergonhoso, mas fico feliz em ter me dado conta disso e cessado de agir dessa maneira.

Mesmo tomando responsabilidade por meus atos, acredito sim que, junto com outros homens, sou um produto de nosso condicionamento. E que ele nos dificulta admitir culpa e expor qualquer tipo de emoção.

Quando somos desencorajados de expressar nossas emoções em nossa infância e adolescência, isso faz com que muitos de nós sigam firmes em sua recusa de expressar arrependimento quando vemos alguém sofrendo por conta de nossas ações.

Quando estava escrevendo esse artigo, me lembrei de uma de minhas falas favoritas de Gloria Steinem:

“O primeiro problema para todos nós, homens e mulheres, não é aprender; mas sim desaprender.”

Então, para muitos de nós, o assunto é primeiro desaprender como usar essas lâmpadas de gás (referência à origem do termo gaslighting/gaslaitear) e entender os sentimentos, opiniões e posições das mulheres em nossas vidas.

Pois a questão de gaslaitear não seria, em última instância, sobre nosso condicionamento em acreditar que as opiniões das mulheres não têm tanto peso quanto as nossas? Que o que elas têm a dizer e o que sentem não é tão legítimo quanto o que nós dizemos e sentimos?

(Yashar Ali)

2 thoughts on “GASLIGHTING: Alguém está tentando fazer você enlouquecer?

    • Lei Maria da Penha prevê punição à violência psicológica. O problema é que a violência psicológica é encarada, quase sempre, como algo “normal” na dinâmica dos relacionamentos. O mais importante é a vítima tomar consciência e denunciar.

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